Em
2007, o Instituto Opara de Visão Ecosófica (INOVE) produziu, com roteiro e
direção de Josemar Martins Pinzoh e Luiz Sérgio Ramos, um vídeo-debate que
tematizou a “cultura da fuleragem”. Intitulado de “O Estado da Arte da
Fuleragem”, o documentário incita a discussão sobre o excesso de utilização do
recurso do “duplo sentido” em várias músicas que foram massificadas pela mídia
e pelos paredões. Quase dez anos depois, pouca coisa mudou. Aliás, com relação
aos paredões de som, eles se tornaram gigantescos e muito mais potentes, eles
estão mais frequentes no cotidiano das cidades, impondo a vontade de seus
donos, desrespeitando a coletividade e segmentando opiniões do público em
geral.
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A semiótica dos vaqueiros: de protagonista a coadjuvante. Foto: Reprodução |
A
“tradicional” Festa dos Vaqueiros de Curaçá tem se tornado um “corpo sem alma” e
um “palco de divergências”. A cada ano que se passa, a festa está perdendo o brilho, e seu maior “astro” agora é apenas um mero figurante numa cidade batizada como
a “capital dos vaqueiros”, inclusive esse é o chavão no pórtico da cidade. O
desaparecimento do vaqueiro tem sido gradual até mesmo nos cartazes. Se
observarmos bem, a imagem que antes ocupava a maior parte do material de
divulgação, hoje perdeu espaço para as demais “atrações”, tornando-se apenas
uma marca d’água nos anúncios e uma desculpa para a realização dos festejos que
levam o seu nome, mas que na realidade há muito tempo não vos pertence mais.
A
63ª edição do evento rendeu muitas críticas nas redes sociais e até hoje ainda
pairam pelas ruas da cidade comentários sobre o “fracasso” da festa. Bem
verdade que os tempos são outros e que a tal arenga de que “gosto não se
discute” ainda é repetido incessantemente. Gosto se discute sim, tem que se
respeitar, mas nem tudo deve descer goela abaixo, quer dizer, ouvido adentro.
Infelizmente o gosto (ou o erro) de ocupar o “circuito da festa” com “paredões”
tem se repetido ano após ano. Será que os organizadores já se perguntaram se os
vaqueiros “gostam” e “concordam” com isso? Será que as bandas tocam o que os
vaqueiros querem ouvir? Será que o vaqueiro pode pagar pelo ingresso para ter acesso
à própria festa? Sei lá...até já imagino o que vão dizer: “a festa foi vendida”.
E de quem é a culpa? Só sei que não é dos vaqueiros.
Não
sei se as pessoas perceberam, mas durante as festas um grupo de “forro pé de
serra” tocou – fora dos holofotes – músicas mais tradicionais e alheias aos
ritmos mais eletrizados (desses tempos pós-modernos) que disputavam a
“virilidade do som” nos paredões espalhados pelas ruas numa verdadeira confusão
acústica. A banda boavistana animou não só os organizadores, mas também os
adeptos da “boa música” que ainda acreditam que iniciativas simples como estas
possam tomar maiores proporções, pois é intolerável que eventos como a Festa
dos Vaqueiros torrem dinheiro e onerem os cofres públicos custeando “grandes
atrações” em detrimento do verdadeiro sentido da festa e de seu homenageado.
É
terminantemente proibido “vender” a tradicional festa a terceiros para lucrarem
à custa dos “homens da alma de couro”. Se o lucro for o objetivo, então
inventem outro evento, numa outra data e com outro nome. Porque usar o nome de
vaqueiros – um dos nossos maiores símbolos – é no mínimo indecoroso. É duma
falta de respeito sem tamanho, que exige de nós curaçaenses que prezam pela sua
cultura, um aboio coletivo altissonante que emita profundamente a nossa lamúria.
A festa dos vaqueiros tem que ser feita para os vaqueiros, afinal de contas,
eles são os verdadeiros donos. Os outros é que são os convidados e não o
contrário.
Discutir
o resgate da Festa dos Vaqueiros é imprescindível. Estamos próximos de mais um
pleito eleitoral e nós eleitores não podemos perder a oportunidade de cobrar
dos candidatos a inclusão dessa pauta em seus programas de governo. É preciso
criar uma legislação que organize a realização desse e dos demais eventos
culturais de Curaçá. Criar uma política
de resgate, proteção e difusão do patrimônio artístico, cultural e histórico de
Curaçá deve ser uma das prioridades de todo e qualquer governo. Precisamos
preservar a nossa memória, pois, como afirma o sociólogo Octávio Ianni, “a
memória é o segredo da história”.
Por Luciano Lugori
Professor,
Jornalista e Curaçálico